quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Millôr Fernandes

FÁBULAS FABULOSAS: OS PATOLÓGICOS


Uma bela pata, das antigas, que acreditava na prole e na responsabilidade familiar (1), acabando de dar à luz uma maravilhosa ninhada de quatro patinhos, e preocupadíssima com sua educação rápida – e eclética – num mundo em que a competição é verdadeiramente patológica (2), levou os filhinhos, certa manhã, à beira dum lago, para que iniciassem suas aulas de natação, prática fundamental ao orgulho da espécie (3).

- Vejam só, filhinhos! – disse ela, depois de verificar com uma das patas se a temperatura da água era adequada.

- Reparem bem a maneira correta e elegante de entrar na água (4).
Dizendo isso, atirou-se na correnteza, espadanando água pra todos os lados e começando a nadar, no que supunha o supremo da elegância (5). E ficou boiando, esperando, bobamente feliz (6), que os filhos a acompanhassem.

Mas os patinhos, em vez de acompanharem a mãe, numa natural compulsão bioecológica, permaneceram na margem onde estavam, dando risadinhas e tapando a boca, virando a cara para rir mais, numa atitude estranha e flagrantemente desrespeitosa. A mãe, severa, apelou para o máximo de sua autoridade moral, berrando para que todos a acompanhassem. Ao que o mais atrevido dos patinhos, feito porta-voz dos outros, dirigiu-se a ela da seguinte maneira (ora, vejam só!):

- Mãe, você deve mesmo ser uma velha supremamente idiota supondo que vamos arriscar nossas vidas tão tenras dessa maneira primária e amadorística, mergulhando em apnéia quando existem aparelhagens maravilhosas, de proteção total. Que você não tenha aprendido nada através da existência, não entenda bulhufas de pressão e descompressão, e não saiba o risco que corre se atirando in natura num elemento estranho e imprevisível, ou está se arriscando porque sabe que lhe resta pouco tempo de vida, é problema seu. Mas nós, os jovens de hoje, não nos atemos nem à filosofia do absolutismo biossocial, nem às besteiras de condicionamento genético. Nos recusamos ao teste sem salvaguarda adequada. Isso que você demonstra pode ser coisa absolutamente individual. Flutua confortavelmente é verdade (apesar do seu peso, gorda como está, mais para pâtée de foie gras do que pra Sílvia Pfeiffer), mas isso pode não acontecer conosco. Nos atirarmos à água pode ser fatal. Portanto, madame, esteja certa de que só aceitaremos essas experiências aquáticas a partir de conhecimento mais profundo (o duplo sentido é involuntário), do líquido elemento. No momento, porém, dispensamos sua orientação e permanecemos seguros, aqui em terra.

Tchau, bela!

Terminando, o patinho líder, seguido dos irmãos, saiu correndo, veloz e alegremente, em direção à granja. Mas, quando iam atravessando a estrada, foram todos esmagados por um caminhão.

(1) – Família nuclear
(2) - Perdão!
(3) - Todos já ouviram falar em “nada como um pato”.
(4) - Não existe maneira correta de entrar n’água. Não existe maneira correta de fazer alguma coisa.
(5) - Vocês já ouviram falar em “parecia uma pata choca?”
(6) - Existe alguma felicidade que não seja boba?


MORAL: QUASE SEMPRE A GENTE EVITA O PERIGO ERRADO.

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