sábado, 26 de março de 2011

O Calor e o Frio dos Outros





O calor e o frio dos outros

Mantenho correspondência por e-mail com algumas pessoas que moram fora de
Porto Alegre e fora do Brasil. Não há um único e-mail, de ida ou volta, em
que não se fale rapidamente do tempo. Aqui está um calor dos infernos. Pois
aqui choveu o dia inteiro e refrescou.

Uma conversa mundana que eu achava típico de pessoas mundanas como eu, mas
quando li o livro que traz as cartas que Clarice Lispector trocava com
alguns de seus amigos, reparei que 90% delas também continham observações
meteorológicas. Por mais filosófico ou intelectual que fosse o teor da
carta, sempre havia um momento para falar do sol ou do nublado lá fora.

Fico pensando o que significa isso. Que me importa se em Paris está chovendo
ou se no Rio faz 42ºC à sombra, já que não estou de passagem marcada para
lá? O que importa para meus amigos forasteiros se em Porto Alegre choveu
muito em 2001? Todos os dias chove ou faz sol, está frio ou quente, úmido ou
seco, e a cada manhã isso nos parece um fenômeno sobrenatural e espantoso.

Creio que compartilhar as condições climáticas do lugar em que se está é um
recurso de aproximação. É uma maneira de nos situar geograficamente, de
preparar um cenário "visível" para quem não está nos enxergando. Lá no
hemisfério norte a pessoa está encarangada, congelada, e no entanto pode nos
imaginar bronzeada e suando, vestindo uma leve blusinha de alças. E talvez
seja também uma maneira de justificar nosso humor: temos nossas próprias
variações de temperatura, somos pessoas nubladas ou ensolaradas, gélidas ou
quentes. A meteorologia nos influencia tanto quanto a posição dos astros, e
se não estamos muito pra conversa, vai ver é porque tem uma ventania lá fora
que está perturbando por dentro também.

Não sei se você está lendo este texto na beira da praia ou embrulhado num
cobertor. Não sei onde você está. Não sei se há um temporal se armando ou se
está um daqueles dias cinzas que provocam melancolia na gente. Se eu
soubesse, talvez soubesse um pouco de você. É um mistério que a natureza não
explica: nossa necessidade de localizar o outro climaticamente. Relutamos em
perguntar: você está deprimido hoje? Chorando muito? Com vontade de cometer
uma loucura? Com saudades de alguém? Em vez disso, é tão mais fácil: como é
que está o tempo aí?

Aqui, agora, chove, mas acho que vai abrir.



- Martha Medeiros - 08 de novembro de 2009 - copiado de www.zerohora.com.br

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