segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

CHUVA: tragédia anunciada... desde sempre...

PRELÚDIO DA MONÇÃO

Vai chover muito.
No jardim que se esboroa de secura,
cada folha suplica uma gota d'água.
Os passarinhos já fecham os olhos,
antes que o sol lhes seque
o pingo líquido dos olhos.

As cigarras crepitam,
queimadas sobre os troncos ardentes.
Sai o halo de fogo de dentro das pedras.
Não há nada a fazer, senão descair
como as lânguidas palmas.
Esperar que seja possível a vida.

Vai chover muito:
tudo está olhando para as nuvens que engrossam,
que tropeçam no seu peso,
se acomodam para choverem tranquilamente.
Ah! como vai chover...

A ordem virá de um vento brando
que ainda se adestra longe.
Seu corcel pulará de súbito no alto do monte
e seu chicote luzirá no céu, turvo de azul.

Talvez o mar já sinta o comando remoto
e esteja concentrando seus cristais verdes,
estendendo sua pequena espuma fatigada,
cavando suas cavernas roxas,
oleosas campânulas súbitas,
nesse campo de estranhas metamorfoses.

Tremerão levemente estas pequenas folhas sensíveis,
e a sombra do céu virá toldar estas serenas estátuas.
As areias se moverão, timidamente, em seus lugares
e os galhos secos tristemente cairão, para sempre mortos.

Como vai chover!
Oh, os tambores da chuva torrencial já se ouvem dentro do chão celeste...
Lá vem o corcel de retorcidas crinas,
e o látego do invisível ginete
ziguezagueia e esconde-se.

Vai chover toda a noite:
- no sono abafado da floresta profunda;
- nas calvas pedras, sulcadas por antigas tormentas;
- no grande mar parado e nublado pelo aguaceiro;
- nos brancos cemitérios de anjos inúteis, de míseras lâmpadas;
- nas ruas vazias, com seus charcos onde se afogam as sombras humanas;
- nos jardins extenuados, com os pássaros escondidos até a voz.

Vai cair uma chuva imensa,
pelos vestidos dos santos,
pelos cabelos dos colegiais,
pelos vidros dos palácios,
pelas escadas dos asilos,
pelos pátios dos manicômios,
dos hospitais e dos necrotérios...

Vai cair uma chuva tão grande sobre todas as coisas,
que tudo ficará abolido;
mas ficará purificado?

Mesmo a palavras de amor,
o suspiro de agonia,
o protesto, o riso, o lamento
serão levados nessa chuva poderosa.


Ninguém poderá levantar a mão
e agarrar e prender como a trança de uma mulher,
a crina de um animal ou a ramagem de uma árvore,
essa livre chuva sem dono humano
que cai sozinha e governa.

Só quando o temporal cessar,
e os ralos das tristes cidades sossegarem,
se poderá saber o que sobrevive.
Se alguma coisa recomeçará. 

(Cecília Meireles - 1946)

0 comentários:

Postar um comentário