PRELÚDIO DA MONÇÃO
Vai chover muito.
No jardim que se esboroa de secura,
cada folha suplica uma gota d'água.
Os passarinhos já fecham os olhos,
antes que o sol lhes seque
o pingo líquido dos olhos.
As cigarras crepitam,
queimadas sobre os troncos ardentes.
Sai o halo de fogo de dentro das pedras.
Não há nada a fazer, senão descair
como as lânguidas palmas.
Esperar que seja possível a vida.
Vai chover muito:
tudo está olhando para as nuvens que engrossam,
que tropeçam no seu peso,
se acomodam para choverem tranquilamente.
Ah! como vai chover...
A ordem virá de um vento brando
que ainda se adestra longe.
Seu corcel pulará de súbito no alto do monte
e seu chicote luzirá no céu, turvo de azul.
Talvez o mar já sinta o comando remoto
e esteja concentrando seus cristais verdes,
estendendo sua pequena espuma fatigada,
cavando suas cavernas roxas,
oleosas campânulas súbitas,
nesse campo de estranhas metamorfoses.
Tremerão levemente estas pequenas folhas sensíveis,
e a sombra do céu virá toldar estas serenas estátuas.
As areias se moverão, timidamente, em seus lugares
e os galhos secos tristemente cairão, para sempre mortos.
Como vai chover!
Oh, os tambores da chuva torrencial já se ouvem dentro do chão celeste...
Lá vem o corcel de retorcidas crinas,
e o látego do invisível ginete
ziguezagueia e esconde-se.
Vai chover toda a noite:
- no sono abafado da floresta profunda;
- nas calvas pedras, sulcadas por antigas tormentas;
- no grande mar parado e nublado pelo aguaceiro;
- nos brancos cemitérios de anjos inúteis, de míseras lâmpadas;
- nas ruas vazias, com seus charcos onde se afogam as sombras humanas;
- nos jardins extenuados, com os pássaros escondidos até a voz.
Vai cair uma chuva imensa,
pelos vestidos dos santos,
pelos cabelos dos colegiais,
pelos vidros dos palácios,
pelas escadas dos asilos,
pelos pátios dos manicômios,
dos hospitais e dos necrotérios...
Vai cair uma chuva tão grande sobre todas as coisas,
que tudo ficará abolido;
mas ficará purificado?
Mesmo a palavras de amor,
o suspiro de agonia,
o protesto, o riso, o lamento
serão levados nessa chuva poderosa.
Ninguém poderá levantar a mão
e agarrar e prender como a trança de uma mulher,
a crina de um animal ou a ramagem de uma árvore,
essa livre chuva sem dono humano
que cai sozinha e governa.
Só quando o temporal cessar,
e os ralos das tristes cidades sossegarem,
se poderá saber o que sobrevive.
Se alguma coisa recomeçará.
(Cecília Meireles - 1946)
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